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13
Nov17

A ignorância do Ocidente - II

Ricardo Jorge Pereira

Escrevi há dias sobre a ignorância cultural, geográfica e política da Europa (ou melhor, de muitos dos seus líderes).

Ora, pretendo hoje retomar o ‘tema’ estendendo-o, porém, a outras latitudes: Xi Jinping pronunciou na abertura do 19.º Congresso do Partido Comunista Chinês (no passado dia 18 de Outubro) um discurso com cerca de três horas de duração. Nele, o líder chinês evidenciou a sua visão para o país não tendo apenas como ‘horizonte’ temporal os próximos cinco anos mas sim os próximos trinta. Ou seja, o ‘caminho’ para se alcançar o sonho chinês: transformar a China na superpotência líder do mundo.

É evidente que atingir tal objectivo implicará contornar e/ou eliminar uma série de barreiras.

Num momento em que o presidente norte-americano (e a sua entourage…) está praticamente a terminar a sua viagem política e diplomática a vários países asiáticos – e também à China –, penso fazer todo o sentido abordar e transcrever o conteúdo de um texto cujo título é “Learning from China: three lessons for the ignorant West” e que dá conta de algumas dessas barreiras e obstáculos.

O seu autor é, também, consultor internacional e orador – Diego Gilardoni – e foi publicado na edição online do jornal de Hong Kong South China Morning Post no início do passado mês de Setembro.

Não o faço, no entanto, sem deixar duas pequenas notas prévias.

A primeira: embora considerando, diferentemente do autor referido, que o ‘Ocidente’ não é todo igual nem, pois, uma entidade moral, ética, social, económica e cultural homogénea reconheço, todavia, a existência de um pensamento pouco salutar comum à generalidade das elites políticas e empresariais dos Estados Unidos da América e dos países europeus.

A segunda é esta: o facto de colocar aqui a tradução que fiz deste texto não significa, naturalmente, que considere a cultura em que nasci e cresci “lixo” e a cultura chinesa “perfeita”.

Não.

Acredito que temos que relativizar as coisas, por assim dizer.

A chamada “cultura ocidental” tem, garantidamente, muitos defeitos mas tem, também, muitas virtudes, se se quiser dizer assim.

Tal como a chinesa ou como qualquer outra do mundo, de resto.

Acho – e permito-me interpretar o espírito do autor – que o texto que escolhi transmite, no fundo, uma mensagem: que temos que aprender uns com os outros.

Todos com todos.

 

 

«Existe apenas uma coisa mais espantosa do que a metamorfose económica por que a China tem vindo a passar nas últimas décadas: é a ainda muito generalizada ignorância sobre a China que existe nas elites política e empresarial do Ocidente.

Vivemos num mundo multipolar e muito complexo em que a China se está a tornar num parceiro indispensável mas que muitos, através de um quadro mental ocidentalizado e simplista ainda amarrado ao século XX, não compreendem hoje nem os desafios que lhe correspondem.

O crescente poder da China no plano mundial é entendido como uma combinação de fascínio, de extrema admiração, de preocupação e, às vezes, de um medo injustificado e raros são os que fazem um esforço sério para entender a China e a sua maneira de olhar para o mundo.

Isto é um erro grave já que compreender a cultura chinesa se tornou indispensável para quem queira compreender o hipercomplexo mundo em que a China desempenha um papel cada vez mais importante.

Perceber o ‘sistema’ cultural chinês não é apenas extremamente importante para entender as razões que suportam o comportamento da China: o Ocidente poderia, na verdade, aprender muito com a China cujo mecanismo de pensamento está, pelo menos em parte, melhor preparado para ultrapassar os desafios do nosso exigente tempo.

Enquanto que, por exemplo, no Ocidente prevalece uma mentalidade de “curto prazo” que está na base de ‘males’ políticos e económicos (da crise financeira de 2008 à transformação de regimes democratas em ineficientes regimes “vetocratas”, por exemplo), a cultura chinesa está focada no “longo prazo”.

Ora, ter uma perspectiva de “longo prazo” permite-nos olhar para as situações através de um ponto de vista mais cristalino reduzindo, por isso, o facto de poderem ser tomadas decisões apressadas sem consideração, claro, pelo contexto geral.

A perspectiva de “longo prazo” da China baseia-se no princípio taoísta segundo o qual a única lei imutável do Universo é a que diz que este está em constante mudança.

Para os chineses as situações alterar-se-ão sempre e aquilo que é, hoje, um aspecto negativo poderá tornar-se, amanhã, num aspecto positivo tal como, de resto, aquilo que é, hoje, um ‘prejuízo’ se poderá transformar, amanhã, em ‘lucro’.

É por isso que aquilo que importa para a China é o contexto.

Tudo isto contribui para o bom desempenho ao nível global de muitas empresas chinesas que poderão integrar, de uma forma pragmática, os seus objectivos de “curto prazo” numa estratégia de “longo prazo”.

De facto, aquele que tem sido, nos últimos anos, e é, talvez, o maior exemplo de um projecto chinês de “longo prazo” dá pela designação de A Iniciativa Faixa e Caminho” [ou, em língua inglesa, “The Belt and Road Initiative”], a visão chinesa para uma nova Rota da Seda [da qual, aliás, falei aqui no blogue] que, se for bem sucedida, alterará o comércio global nas próximas décadas.

Efectivamente, um projecto económico e geoestratégico de uma tão grande envergadura não poderia ter sido delineado por um governo do Ocidente mais focado nas próximas eleições do que nas próximas gerações.

Um outro aspecto da cultura chinesa que mostra com esta se encontra em radical oposição à do Ocidente reside no facto de que enquanto a mentalidade ocidental se foca nas ‘coisas’ como entidades individuais a chinesa foca-se, por seu lado, nas relações entre essas ‘coisas’.

Estamos, na tradição ocidental, habituados a pensar de forma analítica: para que o ‘todo’ possa fazer sentido, precisamos de observar as várias partes isoladamente.

A tradição chinesa é, pelo contrário, completamente diferente já que os chineses pensam holisticamente.

O que significa que não separam as ‘partes’ do ‘todo’ uma vez que o ‘todo’ não é o resultado das várias ‘partes’ conjugadas mas sim como que o ponto de encontro da reunião de todas as ‘partes’.

Na verdade, esta diferença entre os padrões de pensamento ocidental e chinês reflecte-se, de forma muito clara, no campo da medicina.

Na China trata-se uma doença perspectivando todo o corpo do doente e não apenas o órgão afectado porque qualquer problema que afecte uma parte do corpo é visto como um sintoma local de um problema de todo o corpo.

Mais do que no campo da medicina esta abordagem pode ser muito útil para dar sentido à complexidade do nosso mundo em que todas as ‘matérias’ globais (sejam elas de origem económica, social, cultural, militar ou natural) estão interligadas e não podem, por isso, ser vistas de forma isolada sob pena de se correr o risco de perceber apenas parte da situação em causa.

Uma outra característica importante da cultura chinesa é a integração de opostos e de contradições.

Na China, como diz o ditado popular, se é certo que uma qualquer declaração é verdadeira, também o seu contrário pode ser exacto.

Nada disto faz sentido no quadro lógico binário do pensamento ocidental baseado no princípio da não contradição segundo o qual se A é verdadeiro e B é o contrário de A, então B tem necessariamente que ser falso.

Não é assim no pensamento chinês influenciado pelo princípio taoísta “Yin” e “Yang” segundo o qual todas as ‘coisas’ são inseparáveis dos seus opostos: tanto A como B, apesar de serem opostos, podem ser verdadeiros.

Enquanto os ocidentais vêem dois conceitos (aparentemente) opostos como irreconciliáveis, os chineses vêem-nos como partes de algo maior e podem, pois, conjugá-los num novo conceito.

O melhor exemplo deste padrão mental é o dado pela língua chinesa em que a palavra para designar “crise” resulta da combinação das palavras “perigo” e “oportunidade”.

Estando à vontade com esta ambiguidade, os chineses podem, por isso, fundir duas perspectivas opostas e criar uma nova.

Podemos perceber esta característica cultural nalguns conceitos políticos desenvolvidos nas últimas décadas como, por exemplo, “Um País, Dois Sistemas” e “Economia Socialista de Mercado”.

Estes conceitos são, apenas, para muitos ocidentais, oxímoros incompreensíveis mas para os chineses eles reflectem uma integração holística e dialéctica de opostos que abrem caminho para uma nova e original perspectiva que não é baseada numa análise abstracta e dogmática da realidade mas numa adaptação pragmática a um contexto específico.

Os chineses não pensam “ou” mas sim “e”: não “Estado ou Mercado” mas sim “Estado e Mercado”, não “Competição ou Cooperação” mas sim “Competição e Cooperação”.

No Ocidente, a maior parte dos agentes políticos ainda pensa de forma dogmática em termos da existência de opostos irreconciliáveis; são, pois, incapazes de construir uma nova perspectiva da realidade e é por esta razão que estão a perder terreno.

O mundo viveu, nos últimos 15 anos, mudanças dramáticas e as mudanças futuras (como resultado de alterações ao nível do equilíbrio geoeconómico e o advento de novas tecnologias) vão necessitar de um correcto quadro mental da finança mundial e dos líderes políticos.

Infelizmente, no Ocidente, muitos líderes políticos e empresariais irão enfrentar os desafios do futuro com “ferramentas” intelectuais do passado.

Para se ser, hoje, um líder global tem que se ter um horizonte mental global.

Desenvolver um quadro mental global implica conjugar diferentes perspectivas e, através da inovação, integrá-las numa só.

Uma nova perspectiva pode ajudar-nos a ‘desmontar’ a complexidade deste nosso mundo e a encontrar novas soluções para novos problemas.

Os líderes ocidentais têm que perceber que o facto de aprenderem com a cultura chinesa só poderá trazer benefícios e abrir novas ‘fronteiras’ e oportunidades.

Confúcio disse um dia que a verdadeira sabedoria é perceber-se o quão ignorante se é.

Chegou, pois, o tempo para que os líderes políticos e empresariais do Ocidente percebam a sua ignorância e façam algo para a solucionar».

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