O artigo “Could 2018 be Europe’s new 1968?” que o jornal norte-americano The New York Times ontem publicou referiu, por exemplo, que uma espécie de think tank (‘apelidado’ de conservador…) – composto por personalidades oriundas de todo o continente europeu – publicou, em Outubro de 2017, um manifesto intitulado “A Europe We Can Belive In” (ou, em português, “Para Uma Europa Na Qual Possamos Acreditar”).
Não participei, evidentemente, na elaboração de tal documento nem na definição e organização dos princípios que orientaram os seus autores mas estou inteiramente de acordo com o título que lhe foi dado.
Destaco hoje, por isso mesmo, parte de um diálogo ocorrido no decorrer do programa radiofónico Império dos Sentidos (difundido na estação Antena 2 no passado dia 9 de Fevereiro) entre o apresentador Paulo Alves Guerra e a psicóloga Mariana Vareta a propósito da vaga de refugiados que, nos últimos anos, tem pretendido aceder à ‘fortaleza’ Europa.
Paulo Alves Guerra [PAG] – «Como sabemos, Grécia e a Itália eram indicadas, normalmente, como grandes salas de espera – salas de espera gigantes – que acolhem refugiados. Esta participação a título voluntária também suscita naturalmente o interesse para sabermos o que pensa e o que pode fazer alguém que, generosamente, avança no terreno, muitas vezes com poucas ‘armas (a não ser uma enorme boa vontade e a ideia do bem comum). Por isso mesmo, saúdo Mariana Vareta: viva Mariana, bom dia...»
Mariana Vareta [MV] - «Olá, bom dia Paulo. Obrigada pelo convite.»
PAG – «Antes de mais, em que campo da Grécia é que trabalhou [voluntariamente]? Ou em que campos é que trabalhou?»
MV – «Eu fui para a Grécia no início de Abril de 2016, portanto, ainda Idomeni estava...»
PAG – «Estava a crise a começar… não era?»
MV – «Exactamente. Portanto, foi pouco depois das fronteiras terem fechado e se ter criado espontaneamente um campo de refugiados com cerca de quinze mil pessoas na fronteira com a antiga Macedónia. Portanto, foi aí que eu comecei a trabalhar e, mais tarde, quando o governo grego forçou a evacuação desse campo para campos organizados e geridos pelo exército grego nós fundámos, então, a Mobile Info Team e começámos a prestar apoio em cerca de doze campos à volta da cidade de Salónica.»
PAG – «Essa foi uma primeira experiência que não se confinou a esse campo perto de Salónica. Passou por outros campos também, Mariana?»
MV – «Pois, quando Idomeni foi evacuado as cerca de dez mil pessoas que sobravam nessa altura foram ‘distribuídas’ na sua essência por dez ou doze fábricas desactivadas à volta da zona industrial de Salónica que é a segunda cidade da Grécia. Portanto, eram dez a doze campos. Portanto, eu acabei por trabalhar em vários porque sendo uma equipa móvel, nós ‘estacionávamos’ um dia por semana num ou dois campos à volta dessa cidade. Portanto, eu não me fixei num campo só depois de Idomeni. Acabei por prestar apoio nesta dezena de campos à volta de Salónica que, entretanto, foram fechando (este ano já estão quase todos fechados).»
PAG – «Para onde foram os refugiados, entretanto, Mariana? O que é que sabe sobre os destinos?»
MV – «Felizmente… Portanto, há dois grupos grandes de refugiados na Grécia. Portanto, as pessoas que chegaram antes do acordo da União Europeia [UE] com a Turquia. E, portanto, as pessoas que chegaram até 20 de Março de 2016 e as pessoas que chegaram depois. Portanto, as pessoas que estavam em Idomeni, com quem eu comecei a trabalhar, felizmente – e já passaram quase dois anos – na sua maioria já saíram da Grécia ou estão à espera de voo para sair. E pronto, portanto, as pessoas com quem eu trabalhei nesses campos felizmente já saíram ou foram ‘movidas’ para apartamentos onde estão à espera do voo para sair da Grécia.»
PAG – «Se eu estou bem lembrado, a UE e a Turquia acertaram basicamente que os migrantes em situação irregular que chegavam às ilhas gregas – ou que chegam, porque continuam a chegar embora em menor número, não é? – a partir da Turquia e que não estavam propriamente a requerer asilo (ou cujo pedido não tenha sido aceite) podiam ser devolvidos à Turquia (peço desculpa da expressão mas era mesmo assim a expressão oficial): por cada sírio devolvido à Turquia a partir das ilhas gregas após uma travessia irregular, a UE aceitaria um sírio vindo da Turquia que não tenha tentado fazer esta ‘viagem’ de uma forma irregular. Ora, nas contas (que não estão absolutamente fechadas) de 2017, cerca de dez mil refugiados sírios foram reinstalados na UE a partir da Turquia ao abrigo desta disposição. A UE prestou apoio oficial à Grécia e à Itália para o estabelecimento dos chamados centros de registo com ideia de ajudar as autoridades destes países a gerir melhor os fluxos de imigração. Com a vasta experiência que tem, MV, diria que estes centros foram chegando para as necessidades ou ficam muito aquém daquilo que, de facto, ainda é preciso fazer?»
MV – «É curioso estar-me a perguntar isso agora porque antes de voltar – portanto, eu voltei a Portugal há dois dias – e no início de Janeiro nós fizemos questão de sair de Salónica (que, portanto, para quem não sabe, é no norte da Grécia) e irmos fazer uma “missão de reconhecimento” às ilhas gregas onde está, realmente, a situação mais complicada agora exactamente porque os centros de reconhecimento estão instalados nas ilhas e como a situação no norte da Grécia estava melhor, nós decidimos fazer uma “missão de reconhecimento” para saber se faria sentido que o nosso projecto mudasse (se deslocalizasse) do norte para as ilhas. E a situação é...trágica. A situação é absolutamente trágica, dramática.»
PAG – «Quer concretizar um pouco essa ideia? Há números? Pessoas a viver em circunstâncias muito precárias?»
MV – «Há números de sobrelotação. Portanto, estamos a falar de campos… Eu posso dar o exemplo do pior de todos – que, infelizmente, é o mais ‘famoso’ – de memória, na ilha de Lesbos que foi construído para acolher duas mil pessoas e, neste momento, está com cerca de seis mil (já teve oito mil...)»
PAG – «É um campo onde falta água muitas vezes, não é? E as pessoas vivem em circunstâncias verdadeiramente penosas, não é?»
MV – «Falta água, faltam casas de banho, faltam chuveiros, faltam condições básicas de salubridade. Mas muito mais do que isso: eu acho que me parece complicado porque é natural que um país se veja atrapalhado a braços com números daqueles, não é? É muito difícil preparar condições dignas para números que não sabemos quais são e que variam muito todos os dias mas o que é mais grave é que não está a ser feito… não lhes estão a ser dadas as condições legais necessárias para pedirem asilo. Portanto, o que eu acho que está a falhar muito na Grécia, com a conivência – eu diria quase criminosa… – da UE é que está a ser, intencionalmente, estabelecido um sistema que não permite às pessoas ter acesso aos seus direitos legais. Portanto, estes centros é suposto terem apoio legal (que, pura e simplesmente, não funciona); as pessoas não sabem o que é que lhes está a acontecer: são sujeitas a entrevistas sem saberem quais são os objectivos dessas entrevistas, o que é que é suposto dizerem…; são, intencionalmente, manipulados no sentido das entrevistas correrem no sentido que interessa à UE que é, basicamente, devolver estas pessoas à Turquia… Portanto, estão a decorrer atropelos diários e gravíssimos de direitos humanos de uma forma que eu nunca achei possível assistir na minha vida dentro das fronteiras da Europa...»
PAG – (…) «Ora, conhecemos as intenções declaradas, intenções oficiais da UE. Entre o discurso e a prática vai alguma distância, MV?»
MV – «Eu, infelizmente – e é com grande pesar que digo isto – tive uma desilusão muito grande com a UE durante este ano e meio que passei na Grécia. (…) E o que me parece é que está tudo a ser feito para, não pelo bem destas pessoas nos países de origem [a Síria, o Afeganistão, a Etiópia, o Mali, o Senegal e o Níger, sobretudo], mas sim para evitar que eles venham para ‘cá’ porque isso assusta eleitorados e…»
PAG – «E dirigentes políticos, claro...»
MV – «Exactamente. E os governos não querem perder votos e é essencialmente isso que move tudo o que são as barreiras que a UE põe a estas pessoas – em números que, postos em perspectiva, são absolutamente ridículos, não é?: nós estamos a falar de pouco mais, abaixo de cem mil pessoas que terão chegado via Grécia, por exemplo, portanto, números absolutamente absorvíveis pela Europa que, realmente, se está a recusar a fazer o básico do acolhimentos a pessoas que estão a fugir da guerra, não é?, portanto. Parece-me ilustrativo que em relação, por exemplo, às condições nas ilhas gregas que são absolutamente trágicas e documentadas por variadíssimas organizações, que a UE tenha dito recentemente num relatório que emitiu em Novembro de 2017, que a solução é enviá-los para a Turquia mais rapidamente. E, portanto, o problema será que a deportação não está a acontecer suficientemente rápido… Eu acho que isto define – ou resume bem – o que é que é o espírito da UE em relação a este problema.».